Líbia: ponto de passagem para o tráfico de seres humanos

Líbia: ponto de passagem para o tráfico de seres humanos

Novo estudo efetuado na Europa revela como funciona o contrabando e o tráfico de migrantes na Líbia. Não são apenas os governantes locais que estão envolvidos, mas também os interesses russos.


Desde a queda do regime de Al-Assad na Síria que a Rússia tem um problema: o futuro da sua base naval no porto mediterrânico de Tartus, bem como da sua base aérea síria de Hmeimim, está em causa. Não se sabe até que ponto, os militares russos conseguirão manter as duas bases na Síria depois do parceiro de Moscovo, Assad, ter sido deposto do poder.

Isto torna outro país dominado pelos árabes ainda mais importante para a Rússia: a Líbia.

Desde dezembro de 2024, mês em que Assad foi deposto, especialistas em segurança têm notado um aumento dos voos da Síria para a Líbia. Num relatório de março deste ano, o centro de pesquisa de Nova Iorque, The Soufan Center, informou que os navios russos já atracaram na base naval de Tobruk, no leste da Líbia, várias vezes. O porto está sob o domínio do comandante líbio que controla grandes partes do leste do país dividido: Khalifa Haftar.

"Imediatamente após a queda de Assad, vários voos e navios de carga trouxeram equipamento russo de bases na Síria para a Líbia”, relata, em entrevista à DW, o investigador do Conselho Europeu de Relações Exteriores e autor de um estudo recentemente publicado sobre a presença russa na Líbia, Tarek Megerisi.

"Era óbvio que, aos olhos de Moscovo, a Líbia é o espaço seguro na região do Mediterrâneo", acrescenta.

Os interesses de Moscovo estão aí representados, principalmente, por milícias mercenárias, como o antigo Grupo Wagner, que agora opera sob o nome de "Afrika Corps".

Interesses de Moscovo na Líbia

Segundo Megerisi, Moscovo tem vários interesses na Líbia . E está a esforçar-se por ter uma presença militar no Mediterrâneo. Até à data, esta presença tem-se verificado principalmente na Síria.

Além disso, a Rússia está interessada na comercialização dos recursos minerais locais, especialmente os depósitos energéticos. Ao mesmo tempo, sob pressão das sanções ocidentais, o país tenta encontrar compradores para as suas próprias exportações. A Líbia serve também como um importante centro de exportação de armas russas.

No conflito líbio, a Rússia apoia há anos o comandante renegado Khalifa Haftar. Continua a ser o parceiro mais importante de Moscovo, afirma Ulf Laessing, responsável pelo programa regional do Sahel da Fundação Konrad Adenauer no Mali.
Vice-ministro russo da Defesa, Yunus-bek Yevkurov, recebe em Moscovo, em 2023, o comandante e governante líbio Khalifa Haftar

"Embora os russos também tenham relações diplomáticas com a parte ocidental do país e com a capital Trípoli, o foco está claramente em Haftar. O que é arriscado, uma vez que Haftar tem agora 81 anos e o seu governo pode ser bastante frágil, mesmo perante a pressão política dos EUA", nota.

 

Ligação com o filho de Haftar

O que torna o papel de um dos filhos de Haftar, Saddam Haftar, também general, ainda mais importante. Este homem, contra quem Espanha emitiu um mandado de detenção em 2024 por suspeita de contrabando de armas, estabeleceu-se como o ponto de contacto da Rússia na Líbia, diz Megerisi no seu estudo.

Haftar forneceu à Rússia uma rede de bases militares na Líbia - e Moscovo demonstrou a sua gratidão: "A Rússia usou tudo isto para (...) ajudar Saddam Haftar a expandir o papel da Líbia como um ponto de passagem para o contrabando de armas, drogas, combustível - e pessoas", explica Megerisi.

Durante anos, houve voos da Síria para o leste da Líbia, conta à DW Laessing, operados principalmente por uma companhia aérea privada síria.

"Através deles, migrantes da Ásia, como o Paquistão e o Bangladesh, chegaram ao leste da Líbia. A partir daí, foram transferidos para navios que partiram para Itália."

Com a ajuda da sua milícia privada (Brigada Tariq bin Ziad), Saddam Haftar construiu uma infraestrutura complexa para o tráfico profissional de pessoas, segundo o estudo de Megerisi. 

Tráfico de pessoas

Poderiam então ser utilizados por redes transnacionais de tráfico humano e contrabando mediante o pagamento de uma taxa. Os visados são as pessoas que, muitas vezes, correm riscos elevados para poderem levar uma vida melhor na Europa. Segundo Megerisi, por vezes os migrantes são obrigados a pagar quantias até 9.000 dólares. 

O contrabando de pessoas segue um padrão fixo, escreve Megerisi: ao chegar à Líbia, os migrantes entregam os seus documentos a outra milícia, que os detém até que os migrantes paguem as "taxas". Até os navios partirem para a Europa, os migrantes são mantidos durante vários dias, geralmente em condições desumanas.

"Depois Saddam volta a receber mais dinheiro para que a sua guarda costeira permita a passagem dos barcos: 100 dólares por migrante para 'barcos mais pequenos' ou uma taxa fixa de 80.000 dólares para barcos maiores".

As rotas dos migrantes para a Líbia variam, escreve Megerisi. Os africanos chegam normalmente por terra, enquanto os asiáticos viajam de avião. No entanto, normalmente viajam para o leste da Líbia através de vários pontos de contacto, onde são entregues à rede de Haftar.

"A migração como arma"

É aqui que entram em jogo os interesses de Moscovo em relação à Europa. "A Rússia está a usar a migração como uma arma", diz Megerisi. Isto já era evidente durante a guerra na Síria, quando os aviões russos trouxeram migrantes de Damasco para Minsk, que tentaram então chegar à Europa Ocidental e aumentaram a pressão sobre as fronteiras externas da UE.

"Desde a queda de Assad, no entanto, o foco da migração tem sido a região do Sahel. Aí, as milícias russas estão a contribuir para o facto de mais pessoas poderem estar a ir para a Europa. Nisto, também, estão a trabalhar lado a lado com Saddam Haftar."

De acordo com Megerisi, a melhor forma de a Europa combater o tráfico de pessoas é oferecer aos migrantes rotas seguras e controlar eficazmente as pessoas que chegam.

"Isto tiraria o negócio aos traficantes de pessoas e a Europa poderia tomar o controlo nas suas próprias mãos”.


Enviar um comentário

0 Comentários